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‘Damaris implorou por liberdade em carta escrita à mão’: veja os detalhes do caso que chocou o país

A jovem de Araranguá ficou seis anos presa sem julgamento, adoeceu dentro do presídio e morreu de câncer dois meses após ser absolvida. Advogada e pai relatam os pedidos ignorados e a luta por socorro que nunca veio.

Foto: Arquivo pessoal

Por Kelley Alves

A letra era trêmula, o papel, amassado. Damaris Vitória Kremer da Rosa escreveu com as próprias mãos o pedido que, acreditava, poderia salvá-la. Na carta endereçada ao juiz, pedia o mínimo: uma chance de ser tratada fora da prisão. Queria colocar uma tornozeleira, voltar para casa, cuidar da saúde. Mas o documento nunca teve resposta.

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Seis anos depois de ser presa preventivamente sem julgamento, a jovem de Araranguá morreu de câncer de colo do útero, em 26 de outubro deste ano, dois meses após ser absolvida pelo Tribunal do Júri. O caso, que ganhou repercussão nacional, revelou um retrato cruel da negligência institucional: uma mulher doente, ignorada pelo sistema até o último suspiro.

“Ela sentia dor e ninguém acreditava”

A advogada Rebeca Canabarro, responsável pela defesa, ainda se emociona ao relembrar as tentativas frustradas de garantir tratamento para Damaris.

“Em 2024, ela começou a relatar fortes dores no baixo ventre. Foi levada várias vezes ao hospital de Rio Pardo e voltava apenas com receituário de Tramadol, um analgésico para dores intensas. A gente pedia exames, mas diziam que não havia nada grave”, contou Rebeca ao Sul In Foco.

Mesmo diante das queixas constantes, a Justiça manteve a prisão.

“Entramos com pedido de prisão domiciliar, mostrando que o presídio não tinha estrutura para cuidar dela. O juiz negou, dizendo que o uso do remédio não era prova de doença grave. Essa decisão foi um erro que custou uma vida”, lamenta a advogada.

Quando os sintomas se agravaram, a defesa recorreu a um laudo particular, mas o resultado foi tratado com descaso. “O exame mostrava uma imagem indeterminada, mas a médica do presídio escreveu que não havia nada sério e mandou ela ao psiquiatra. Achavam que era psicológico”, relatou.

Damaris parou de receber o Tramadol e passou a tomar apenas dipirona e paracetamol.

“Ela sentia dor o tempo todo, e diziam que era invenção. Mesmo assim, ela reuniu forças para escrever, de próprio punho, um pedido ao juiz. Pediu para usar tornozeleira, só para poder se tratar. E até isso foi negado”, relembra.

“Quando fizeram o exame, uma bolsa de sangue estourou”

A tragédia se confirmou em março de 2025. A defesa havia marcado uma consulta ginecológica particular, mas, dois dias antes, o presídio a levou ao hospital público de Rio Pardo.

“Durante o exame de toque, uma bolsa de sangue estourou. Ela foi internada e, naquele mesmo dia, diagnosticaram câncer de colo do útero em estágio avançado”, contou Rebeca.

A advogada acredita que o diagnóstico tardio foi consequência direta da demora judicial.

“Se tivessem concedido a prisão domiciliar quando pedimos, ela teria descoberto o câncer meses antes. O cárcere adoeceu e matou Damaris”, lamenta.

Pai: “A médica achava que ela era viciada em remédio”

Do outro lado, o pai, Ademar da Rosa, ainda tenta entender como a filha foi deixada à própria sorte.

“A médica achava que ela era viciada em remédio, mandou parar tudo. Quando descobriram o câncer, já era terminal, tinha atingido o fígado, os rins e o pulmão. Minha filha foi esquecida ali dentro. Quando perceberam, era tarde demais”, diz angustiado. Ademar conta que Damaris sempre foi uma menina estudiosa, criada na igreja e cheia de sonhos.

Foto: Arquivo pessoal

“Ela cantava nos cultos, estudava Biomedicina, queria cuidar de vidas. Morou na Suíça, falava inglês, era alegre. Ver ela morrer daquele jeito foi devastador”.

Durante um ano, ele percebeu o avanço da doença nas visitas mensais ao presídio. “Cada vez que eu chegava, ela estava mais abatida, mais pálida. Dizia que sentia dor, mas que a médica dizia ser frescura. É revoltante, porque ela não morreu de câncer, morreu de descaso”.

A liberdade que veio tarde demais

Em março de 2025, já muito debilitada, Damaris conseguiu prisão domiciliar. Em abril, passou a cumprir a medida em Arroio do Silva, na casa da mãe, onde iniciou tratamento oncológico.

Mesmo fragilizada, continuava esperançosa. Queria voltar a estudar. Em 13 de agosto, o Tribunal do Júri finalmente a absolveu de todas as acusações. “Ela foi declarada inocente, mas o corpo já não aguentava mais. A liberdade chegou tarde demais”, lamenta o pai.

Foto: Arquivo pessoal

Dois meses depois, Damaris morreu, cercada pela mãe e pelos irmãos.

“O caminho certo é um filho enterrar os pais, nunca o contrário. Ver minha filha morrer nos meus braços, sabendo que ela poderia estar viva, é algo que não tem explicação. O Estado matou minha filha duas vezes: quando a prendeu e quando negou o socorro”.

“Decisões genéricas matam”

A advogada diz que a história de Damaris é, infelizmente, comum.

“No sistema prisional, o que não falta são decisões genéricas. Juízes mantêm prisões preventivas por anos, sem explicar por que o risco ainda existe. O caso de Damaris mostra o que acontece quando a Justiça se acostuma com a desumanidade”.

Rebeca afirma que pretende seguir lutando para que o nome da jovem sirva de alerta.

“Talvez, se Damaris tivesse sido ouvida, hoje estaria viva. Ela não morreu só de câncer, morreu de descaso, de omissão, de um sistema que trata a dor de mulheres pobres como exagero.”

Um símbolo de tudo o que o Estado ignorou

Segundo a advogada, caso de Damaris Vitória Kremer da Rosa, que comoveu o país, se transformou em um símbolo da negligência com mulheres encarceradas e da banalização das prisões preventivas no Brasil.

O pai promete buscar justiça

“Eu não quero vingança, quero mudança”, diz o pai. “Quero que o nome dela sirva de exemplo, pra que nenhuma outra família passe pelo que a gente passou. Minha filha era inocente, foi provado. E o Estado precisa responder por isso”.

Damaris foi sepultada em Araranguá, sua terra natal. Durante o velório, familiares e amigos cantaram o mesmo hino que ela entoava na igreja quando criança.

Foto: Arquivo pessoal

O que levou Damaris à prisão

Em 2019, Damaris foi presa preventivamente, acusada de envolvimento na morte de Daniel Gomes Soveral, em Salto do Jacuí (RS). O Ministério Público sustentava que ela teria ajudado os autores do crime a atrair a vítima até o local da execução, por manter com ele um relacionamento. A jovem sempre negou.

Segundo a defesa, Damaris havia contado ao namorado que havia sido estuprada por Daniel. O homem, então, teria decidido, por conta própria, matar a vítima e queimar o corpo, crime que Damaris não presenciou e do qual nunca houve prova de participação.

Mesmo assim, o MP pediu a prisão preventiva, e ela foi mantida presa por seis anos, em diferentes unidades prisionais do Rio Grande do Sul. Nenhum dos pedidos de liberdade provisória ou domiciliar foi aceito até março de 2025, quando o estado de saúde dela já era crítico.

No julgamento realizado em 13 de agosto de 2025, o Tribunal do Júri acolheu integralmente a tese da defesa e absolveu Damaris de todas as acusações, reconhecendo que ela não teve envolvimento algum no crime.

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